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Vamos mesmo “quebrar tudo”? Mas qual tudo?

Algo muito grandioso, muito espetacular e muito rápido está acontecendo com nossas vidas. Porém, como estamos “envelopados” no próprio processo de mudança, não temos a visão panorâmica da revolução. Somente percebemos a metamorfose quando nos permitimos o debate franco de ideias.

Por conta disso, convoquei o jornalista e produtor editorial Walter Falceta Jr. a participar comigo dessa reflexão. Além de bom interlocutor e provocador intelectual, tem comigo inúmeras afinidades de pensamento.

Posso dizer que viemos da mesma “tribo”. Temos sobrenomes italianos e raízes familiares no Bom Retiro. Somos membros da Geração X nascidos nos anos 60, pilotamos motos na juventude, fizemos coisas importantes na Vila Carrão e gostamos de novidades e desafios.

Quem, como nós, estudou e trabalhou nos remotos anos 70 e 80 pode constituir uma percepção do velocíssimo processo de alteração de conceitos e paradigmas que hoje vivemos. Regras impostas a ferro e fogo, durante séculos, estão sendo revogadas de uma hora para outra, sem que o espírito conservador esboce reação.

Quer um bom exemplo? Recentemente, o cantor Roberto Carlos, conhecido como um católico conservador, revelou no Programa do Jô que não é contrário ao casamento de pessoas do mesmo sexo.

Segundo ele, esse tipo de enlace não faz mal a terceiros e celebra o amor. Para o astro da música, toda autêntica manifestação de afeto e respeito deve ser valorizada.
No caso dos comportamentos de consumo, as mudanças são também radicais. Há pouco tempo, esperávamos o início da noite de sexta-feira para pegar um vídeo na locadora. Correto?

Pois é, mas onde foram parar as locadoras? Quem implodiu a poderosa Blockbuster? Há pelo menos três razões para esse fenômeno de extinção repentina.
Primeiro: popularizou-se a TV a cabo. Segundo: muitos filmes podem hoje ser baixados pela Internet ou vistos pelos streamings, estilo NetFlix. Terceiro: a mídia se barateou e muita gente prefere comprar o DVD ou até mesmo o disco Blu-Ray, em vez de locá-lo.

Podemos dizer, portanto, que vivemos sob a regência do deus Shiva, venerado no hinduísmo. Ele é uma entidade destruidora, que abre caminho para o novo. Ele extingue a ignorância e pavimenta a estrada para o auto-conhecimento.

O antigo sob ataque

Durante a conversa sobre o tema, Falceta Jr. lembrou dos conceitos de “destruição criativa” e “inovação disruptiva”, que podem agregar valor a este artigo. Ele mencionou ainda, de forma especial, as mudanças que se processam no campo das comunicações.

De fato, não podemos deixar de citar o economista Joseph Schumpeter (1883 – 1950), celebrizado por suas teorias sobre o empreendedorismo e por suas ideias sobre a chamada “destruição criativa”, conceito que já tinha sido explorado pelo “vermelho” Karl Marx, pelo anarquista Mikhail Bakunin e pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche.

Segundo ele, as inovações alteram o estado de equilíbrio no mundo econômico e, muitas vezes, destroem a ordem vigente em um segmento ou em toda a cadeia de valor.

Mas quando isso ocorre? Por exemplo, quando um produto realmente diferenciado é lançado no mercado. Ou quando é descoberto um novo método de industrialização ou de comercialização. Até mesmo a quebra de um monopólio pode gerar esse efeito transformador.

Para Schumpeter, o verdadeiro capitalismo vive dessa dinâmica do ataque empreendedor. O novo procura destruir o velho. E se estabelece quando é melhor, mais barato, mais rápido ou mais customizado. Nessa briga sem fim, valem tanto os instrumentos inovadores de management quanto o avanço tecnológico. O Walmart, por exemplo, começou a sepultar o velho varejo já na década de 1960, por conta de sua gestão inovadora de estoques, de sua estratégia de comercialização, de seu marketing de convencimento e de sua política de recursos humanos, fatores que o habilitaram a praticar preços mais baixos que a concorrência.

No caso das tecnologias, convém lembrar que os gravadores de rolo foram despachados para os museus por seus primos miniaturizados, que usavam a fita cassete. Estes, por sua vez, perderam a briga para os CD-players, que agora sofrem feroz ataque dos aparelhos de MP3 e de outros portáteis digitais. A destruição criativa em curso está derrubando também os jornais impressos mundo afora. Informativos como The Huffington Post, Hedge Zero, Jornal do Brasil e Brasil 247 atacam o modelo tradicional na plataforma papel.

Não é à toa que as tradicionais empresas de comunicação já preparam a transição, construindo versões de seus noticiosos para a Internet convencional, para tablets e outros aparelhos móveis.

Formulo agora uma pergunta indecente: você tem ideia de quantas árvores já derrubou para ler diariamente seu jornal?

Tomando-se como parâmetros os dados do The Ecology Global Network, se você compra diariamente um informativo de 70 páginas, está derrubando a cada 14 meses e meio uma imponente árvore de 35 centímetros de diâmetro de caule!

De acordo com estimativas das entidades ambientalistas, o cidadão comum faz outras vítimas florestais ao ler revistas impressas, limpar a boca em guardanapos, secar o suor com lencinhos descartáveis, higienizar a pia com toalhas de rolo e desenvolver sua vida laboral em cadernos e folhas de sulfite.
Considerado o argumento ambiental, portanto, vale a pena a destruição criativa do modelo em curso. Afinal, a produção de papel também demanda muita energia, mesmo na reciclagem.

Projetos que alteram paradigmas

O norte-americano Clayton Christensen (1952), professor da Harvard Business School, tem trabalhado com outro conceito interessante para quem empreende removendo velhos paradigmas. Trata-se da chamada “inovação disruptiva”.

Normalmente, trata-se de um processo que possibilita a criação de um novo mercado. Em geral, trata-se de um produto ou serviço distinto do padrão vigente. Seus atributos diferentes constituem, com o tempo, um novo grupo de consumidores.

Muitas vezes, esse elemento inovador perde em reputação para o produto ou serviço tradicional. Aos poucos, porém, essa oferta seduz os ainda não-consumidores, muitas vezes em razão do preço mais competitivo.

É o que ocorre, por exemplo, com as empresas que atualmente oferecem passagens aéreas de baixo custo. Elas tiram gente dos ônibus e colocam nos aviões (bem apertadinhas, é verdade), modificando o comportamento de consumo de uma parte significativa da população.

Vamos analisar um exemplo bem mais antigo, citado por meu parceiro de reflexão. Quando surgiu, o mosquete era tido como uma arma ruim, inferior ao arco e flecha. Demorava até ser carregado. Não era preciso nem confiável.

No entanto, com um mosquete, qualquer criador de porcos ou oleiro podia virar um soldado, ao passo que os arcos exigiam anos de treino. Com isso, a indústria de armas de fogo revolucionou o mercado da guerra. E, logicamente, seu produto ganhou qualidade no decorrer dos anos.

Convém lembrar um exemplo recente de tecnologia disruptiva. A fotografia digital era, a princípio, menos valorizada que a impressa. Não tinha grande qualidade de resolução, tampouco podia ser facilmente transportada ou manuseada. Era somente uma forma mais barata de registrar momentos importantes.
Com o tempo, no entanto, as câmeras evoluíram e passaram a gravar e armazenar imagens de alta resolução. Em paralelo, os dispositivos de reprodução resolveram o problema da portabilidade. Hoje, todas as cenas das férias da família podem ser exibidas no iPad ou expostas sequencialmente num porta-retrato digital.

Você no olho do furacão

Acredite! Você está participando do mais importante momento da história da desconstrução. Todas as coisas, tangíveis e intangíveis, estão sob ataque, constantemente, em casa, no escritório, na rua.
Cito aqui um exemplo ligado ao meu mundo concreto e também ao de Falceta Jr., um paulistano muito atento às transformações de nossa cidade. Até meses atrás, quem passava pela Avenida do Estado, na capital paulista, via dois enormes prédios irmãos, o São Vito, popular “Treme-Treme”, e o Mercúrio, ambos de 27 andares.

Hoje, o lugar tem um “buraco”, um estranho vazio urbano. A obra “destrutiva” faz parte da necessária revitalização do centro da cidade. Estranhamente, esses prédios duraram menos que uma vida humana. Alguns paulistanos de mais idade viram quando foram erguidos e viram quando foram demolidos.
De todas essas experiências, fica a pergunta: será que as famílias e as escolas estão atentas à necessária pedagogia da desconstrução? Se é para “quebrar tudo”, como pregam os mais jovens, o que é esse “tudo”? Existe alguma coisa que pode e precisa ser preservada?

Quem responde? É um enigma para os filósofos ou para os cidadãos comuns? Quem dá a resposta: é o livro ou é o caminho? E agora, José? E agora, Falceta Jr.?

Eu, de frente para a onda

Particularmente, vivo o agora, como sempre vivi, cultivando a curiosidade sobre o amanhã. O grande tsunami da destruição criativa não me paralisa. Dá um friozinho na barriga, mas é algo que motiva e empurra para frente. Gosto de saber que tomo parte dessa revolução invisível.

Por vezes, participo ativamente do processo, com verdadeiro espírito empreendedor. Noutras ocasiões, paro para contemplar, com serenidade e interesse de aprendiz. Se presto atenção, capto o novo em agitação na panela. Vejo os grãos de milho sofrendo a ação do calor e virando outra coisa. É uma festa de movimentos.

Com certo prazer, assisto ao drama dos que sabotam a mudança, dos covardes, dos arrogantes do tipo sabe-tudo, dos que sustentam o poder sobre a ignorância, a repetição e a imobilidade.

Em alguns casos, ao contrário, vejo com receio os artífices do “quebrar tudo” escolhendo os alvos errados. Há também abuso, falta de critério e a mesma ignorância dos conservadores. Muitas vezes, aquele que tenta mudar o paradigma afronta valores éticos e princípios morais, estes imutáveis.

A rigor, acredito que nenhuma evolução exija como pavimento a terra arrasada e salgada. O velho ensina, mesmo que ensine o que não devemos mais fazer. Conforme salientou Falceta Jr., ao fim de nossa longa conversa, a história dos edifícios São Vito e Mercúrio, citados acima, revela um jeito errado de constituir e gerir condomínios. Precisamos aprender com o dramático exemplo para não repetir o erro.

Se este é um tempo magnífico de aprendizado, também é de incríveis oportunidades para o espírito empreendedor, especialmente num país jovem e emergente como o Brasil.

O “fazer” é hoje também o “fazer de novo” e o “fazer melhor”, sem preguiça e sem comodismo. Empreender exige criatividade e também muito desapego. Requer o desprendimento saudavelmente infantil de quem produzia grandes castelos de lego para, em seguida, desmontá-los e iniciar outra aventura construtiva.

O verdadeiro empreendedor tem bom senso, respeita a obra existente, o legado dos outros, mas procura fazer diferente, mais alto e mais forte, mais bonito e mais sustentável. Talvez nem seja necessário “quebrar tudo”. Talvez o importante mesmo seja construir o “tempo todo”, seja sobre o antigo, seja sobre o vazio.

Marcelo Ponzoni
Edição de dez/ 2011 – Revista Gestão & Negócios

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